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Seca, enchentes, nevascas... O que está havendo com o clima?

Chuva no Nordeste, seca no Rio Grande do Sul e nevascas no Egito. Invernos quentes e verões frios. O clima no mundo parece ter enlouquecido. No ano de 1999, o número de catástrofes climáticas bateu um recorde histórico: foram 755. O recorde anterior, 702, havia sido estabelecido em 1998.
E pesquisas recentes atestam que os eventos climáticos extremos, que fogem à normalidade, foram mais freqüentes nas últimas três décadas. Comparados ao comportamento “normal” do clima, aquele baseado no relato de nossos avós e bisavós, esses acontecimentos parecem inéditos. Mas não são. A história do clima, como você verá, é bem mais atribulada.
Os primeiros colonos ingleses na América do Norte se instalaram em 1587 na ilha de Roanoke, Virgínia, costa leste dos Estados Unidos. Era uma gente corajosa. Eles sabiam que, como a Inglaterra estava em guerra, tão cedo não haveria barcos para visitá-los. Teriam que viver com os frutos da terra. O novo mundo parecia promissor e a tarefa não soou impossível. No entanto, quando o primeiro navio de suprimentos voltou, três anos depois, sua tripulação teve uma surpresa: os colonos haviam sumido. Não sobrara ninguém para contar o que houve. Ninguém, exceto as árvores do local. Foi há apenas dez anos, observando a espessura de seus troncos, alguns com 800 anos de idade, que os cientistas decifraram o que houve em Roanoke quatro séculos atrás. A tragédia, concluíram, foi causada pelo clima: entre 1587 e 1589 ocorreu a maior seca dos últimos oito séculos em Roanoke. Os colonos haviam chegado bem no começo da estiagem. Morreram de fome.
Não foi a primeira vez que uma mudança climática exterminou uma população humana. Os maias, que dominaram a América Central até o sé-culo VIII, sumiram do mapa durante uma forte seca, segundo nos contam sedimentos depositados no fundo dos lagos da região. Os acadianos, que formaram a primeira cidade na Mesopotâmia, há 4 100 anos, também foram vítimas do clima, devido a uma seca provocada pelo esfriamento das águas do Atlântico Norte. Como os cientistas descobriram isso? Primeiro, encontraram, nos sedimentos do Golfo de Omã (entre o Golfo Pérsico e o Mar da Arábia), grandes quantidades de poeira vinda da Mesopotâmia naquela época. Ou seja, o clima estava árido. Sabe-se também que, naquela época, houve um esfriamento no Atlântico Norte, que reduziu a temperatura das águas entre 1ºC e 2ºC. Os instrumentos de medição atuais mostram que, quando o Atlântico Norte esfria, diminui o suprimento de água na Mesopotâmia.
Essas desgraças do passado permitem duas conclusões. A primeira é que não há nada de inédito nas tragédias que vivemos hoje. Os desastres dos maias e dos acadianos foram causados por eventos de uma intensidade que o homem moderno nunca viu, mas é 100% certo que tais catástrofes ocorrerão novamente, segundo Peter deMenocal, da Universidade de Columbia, Estados Unidos, um dos maiores especialistas em clima no mundo. “Secas com duração de vários séculos são raras, mas fazem parte da variabilidade natural.” A seca que assolou os Estados Unidos nos anos 30 – há apenas 70 anos! – e causou um grande êxodo de agricultores que viviam nas planícies do sul, foi um grande flagelo para a potência mundial, mas não passou de algo corriqueiro e mediano na história da Terra. O estrago pareceu imenso, mas estiagens como aquela ocorreram, em média, uma vez por século nos últimos 400 anos na América, segundo estudo do governo americano.
A segunda conclusão é que, embora naturais, esses eventos climáticos radicais são, de fato, ameaçadores e podem causar grandes danos. Estamos, então, correndo o risco de extinção? Nem tanto. Mas, sem dúvida, há com o que se preocupar. “Sociedades complexas são capazes de se adequar a alterações climáticas, mas não são infinitamente adaptáveis”, diz deMenocal.
Porém, há no horizonte uma mudança climática importante que foge à variabilidade natural do clima: a Terra está esquentando. Os cientistas divergem sobre as causas e os efeitos da alteração, mas sua existência é um consenso, como atestou, no ano passado, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), um consórcio de cientistas que estuda o tema há mais de uma década. Segundo o grupo, em 100 anos, os termômetros subiram 0,5ºC, em média.
Não é pouco. Durante a última era glacial, que terminou há 10 000 anos, a temperatura do planeta era apenas 3ºC mais baixa que hoje, mas o gelo ártico chegava à Grã-Bretanha. Por conta desse meio grau a mais, 1998 foi o ano mais quente da década mais quente do século mais quente dos últimos 600 anos (essa aferição é feita pela análise de troncos de árvores ao redor do mundo, como em Roanoke). Carlos Nobre, chefe do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (CPTEC-Inpe), vai além. Para ele, os indícios confiáveis à disposição, que regridem no tempo 6 000 anos, não registram temperaturas tão altas como hoje.
Nos últimos 50 milhões de anos, todos os vaivéns do clima, o início e o fim das eras glaciais, foram disparados pelo Sol. É que, embora não se perceba, a posição do Sol em relação à Terra varia levemente ao longo de milhares de anos e isso muda a quantidade e a distribuição da energia que o astro emite sobre o planeta. Uma das mudanças, por exemplo, é no eixo de inclinação da Terra em relação ao Sol, que varia a cada 41 000 anos. Isso altera a incidência de luz solar sobre certas áreas do globo, o que acarreta mudanças por aqui. Faz muita diferença se a área mais iluminada é um oceano ou terra nua, por exemplo.
Na Terra, três fenômenos acompanham esse balé solar. São eventos independentes, ocorrem de forma simultânea e se intensificam mutuamente.
O primeiro ocorre nos oceanos. Quando a água esquenta, ela perde a capacidade de reter gases, entre eles o gás carbônico (também conhecido como CO2 ou dióxido de carbono) dissolvido. Cerveja quente não faz mais espuma? Pois então: aquelas borbulhas também são gás carbônico. E há gás de sobra para ser liberado. Há, hoje, dissolvido nos mares, 50 vezes mais CO2 que a quantidade existente na atmosfera. E daí? Daí que, na atmosfera, o dióxido de carbono é um dos mais importantes agentes do efeito estufa. Agindo nas camadas superiores, o CO2 aprisiona a energia do Sol e aquece a Terra . Por conta disso, a concentração de CO2 sempre acompanhou o clima: nos períodos mais quentes, havia muito gás carbônico no ar; nos tempos mais frios, pouco. Assim, quando o oceano libera o dióxido de carbono, o resultado é mais aquecimento.
O calor aumenta a evaporação de água, disparando o segundo gatilho, pois o vapor de água é um gás do efeito estufa ainda mais potente que o gás carbônico. Conclusão: ainda mais calor. Por fim, derretem-se as calotas polares, que refletem 70% da luz solar que recebem. Qualquer superfície que as substitua – água, terra ou vegetação – refletirá menos luz (mais fervura). Esse círculo vicioso só pode ser interrompido por uma nova mudança do ciclo astronômico.
A novidade é que, pela primeira vez, está havendo uma mudança climática global em que o Sol não é o ator principal. “A maior parte do aquecimentoobservado nos últimos 50 anos se deve ao aumento da concentração de gases estufa”, diz o relatório deste ano do IPCC. Ou seja, o aquecimento atual não foi disparado pelos ciclos astronômicos, mas pelo gás carbônico, cuja concentração atual no ar é – seguramente – a maior dos últimos 400 000 anos e, possivelmente, a maior em 25 milhões de anos, segundo Carlos Nobre. Tudo graças à queima de combustíveis fósseis (carvão, petróleo), que, desde o início da Revolução Industrial, aumentou 600 vezes a emissão de CO2 na atmosfera, de 10 milhões de toneladas por ano para 6 bilhões de toneladas anuais. Quando queimamos petróleo e carvão, devolvemos à atmosfera uma reserva de carbono que vem se acumulando há bilhões de anos e que, sem nossa ajuda, não voltaria ao ciclo natural.
Bem, e quando começam os efeitos do aquecimento? Para alguns, as maluquices climáticas atuais já são conseqüência do calor extra. Mas a maioria dos cientistas é mais cautelosa em suas conclusões. Diz-se que o estudo do clima é complexo, envolve muitas variáveis e que uma verdade hoje pode ser um fiasco amanhã. Por enquanto, os especialistas só admitem o óbvio, como a elevação da superfície dos oceanos, que foi de 10 a 25 centímetros no século passado. Mas há outros sinais mais sutis. A nebulosidade, por exemplo, aumentou. Por sua vez, a cobertura de neve diminuiu, ao menos no Hemisfério Norte, onde o assunto já foi pesquisado: uma queda de 10% nas décadas de 70 e 80. Ainda no Norte, na década de 80 o outono chegou mais tarde, o que ampliou em 12 dias o período de crescimento vegetal. Resultado: o Norte ficou 10% mais verde no verão em comparação com a década anterior.
Ou seja, em certas áreas, o aquecimento pode significar um aumento da cobertura vegetal em vez de devastação e desertificação, como é de supor à primeira vista.
Diante de tantas mudanças, a pergunta mais óbvia é: podemos controlar o clima e evitar essa mudança? Não. O progresso científico dos últimos 400 anos dá a falsa impressão de que a humanidade domou a natureza, mas isso não corresponde à realidade. O máximo que conseguimos é fazer chover em áreas isoladas, quando muito. A tecnologia mais moderna consiste em despejar, sobre nuvens carregadas de umidade, grandes quantidades de flocos de uma substância que aglomera os minúsculos pingos de água em suspensão. Muito útil para limpar o céu no dia de um espetáculo ao ar livre, mas só.
O que se pode fazer é prever, ainda que de maneira muito precária, o que acontecerá daqui para a frente. As previsões sobre o futuro do clima devem ser tomadas com cautela, mas é verdade também que são dramáticas. Segundo o relatório do ano passado do IPCC, no ano de 2100 a temperaturamédia será 1,4ºC a 5,8ºC mais alta. Na primeira hipótese, o planeta atingiria a mais alta temperatura em 1 milhão de anos. “Mas, se o cenário pessimista se concretizar, teríamos um aquecimento inédito em 3,6 milhões de anos”, afirma Thomas J. Crowley, paleoclimatologista da Universidade do Texas. Ou seja, a temperatura atingiria patamares nunca vistos sequer por ancestrais remotos do homem (o gênero Homo surgiu há “apenas” três milhões de anos). Os oceanos subiriam mais ainda: entre 18 centímetros e 95 centímetros, inundando áreas onde vivem hoje 118 milhões de pessoas. E alguns fenômenos globais que envolvem a atmosfera e o oceano, como o El Niño, seriam mais freqüentes e mais intensos.
Algumas mudanças devem ocorrer subitamente. No Mar do Labrador, na costa leste do Canadá, ocorre a Formação de Águas Profundas, um fenômeno que impulsiona as correntes marítimas ao redor do mundo.Pois bem: segundo Ilana Wainer, professora de Oceanografia da Universidade de São Paulo (USP), o fenômeno pode acabar. Pior: isso ocorreria em algumas décadas, segundo o meteorologista Syukuro Manabe, diretor do Sistema de Pesquisa sobre a Mudança Global, em Tóquio, Japão. A mudança alteraria o clima no mundo porque são as correntes que distribuem o calor solar incidente nos trópicos. Nos pólos, elas fornecem uma energia equivalente a 30% do calor que incide ali. A água tépida da Corrente do Golfo, por exemplo, só alcança a Europa por causa dessa circulação. Se o empurrão faltar, a Europa teria um clima parecido com o do Canadá.
Quando ocorrem grandes mudanças ambientais, sobrevivem as espécies com maior capacidade de adaptação. A raça humana, que já sobreviveu a uma era glacial, tem grandes chances de superar mais essa mudança, mas alguns ficarão pelo caminho: os mais pobres. O aquecimento, por exemplo, deve mudar o regime de chuvas, causar fome e quebras de safra, segundo o jornalista americano William Stevens, autor do livro The Change in The Weather (A mudança no clima, inédito no Brasil). Na África subsaariana, onde milhões vivem da agricultura de subsistência, isso seria uma tragédia. Mas não nos países ricos, onde os recursos permitem comprar comida, erguer diques ou abrir frentes agrícolas rapidamente.
Para muitas espécies, no entanto, o trauma deve ser maior. Entre outras mudanças, o aquecimento está empurrando as zonas climáticas em direção aos pólos, ou seja, áreas hoje ocupadas por florestas temperadas poderiam ter clima propício para matas tropicais. Na Europa, a área de ocorrência de algumas espécies de borboletas moveu-se para o norte no século XX. O menor deslocamento foi de 35 quilômetros. O maior, 240 quilômetros. Prevê-se que, ao final deste século, no Hemisfério Norte, o deslocamento das zonas climáticas seria de 160 a 560 quilômetros. No passado, isso levou espécies a evoluir. Mas a situação atual é diferente: a ação humana isolou os ecossistemas naturais. Florestas cercadas por cidades ou lavouras não podem migrar.
“Sem ter para onde ir, essas formas de vida simplesmente deixarão de existir, em uma perda importante de biodiversidade e um enfraquecimento da rede da vida”, diz o jornalista William Stevens. Os ecossistemas seriam simplificados. Os parques e as reservas naturais, imobilizados em suas fronteiras atuais, restariam inúteis.
Mas tudo isso são hipóteses. No atual estágio do estudo do clima, não é possível fazer mais que isso. É verdade que os centros de meteorologia possuem os mais avançados computadores, capazes de realizar 2,5 trilhões de cálculos por segundo, assim como equipamentos ao redor do mundo. Só o serviço de meteorologia americano mantém quatro satélites, 121 estações com radar e seis centros de pesquisa com supercomputadores. Mas o sistema segue falível. No ano passado, por lá, as previsões de precipitação com um dia de antecedência foram corretas em 69% dos casos e o limite para previsões locais por computador é de uma semana.
É que prever o clima depende de dados de milhões de anos e faltam registros detalhados sobre o passado. A temperatura só começou a ser registrada sistematicamente há 150 anos e com grandes falhas. Em uma varredura dos dados existentes, dois pesquisadores britânicos jogaram fora a maior parte dos registros. Os dados confiáveis nos últimos 150 anos se resumem a 1 548 estações no Hemisfério Norte e 293 no Hemisfério Sul. Esse é o banco de registros humanos na história da meteorologia. Os satélites foram um grande avanço, mas só existem a partir de 1979. Os balões meteorológicos, a partir de 1950. Só nos resta, portanto, confiar nos vestígios deixados pelo clima, fiarmo-nos em nossa limitada capacidade de prever o futuro e procurar evitar os perigos que ele nos reserva.


FONTE: S. Interessante

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